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Especiais

Sem coleiras

 

Uma narrativa sobre aqueles que já viraram habitantes permanentes da UESB

Por: Afonso Ribas e Ísis Pereira

Eles não têm nome nem identidade. Eles não têm donos nem têm teto. Diferentes dos muitos outros de sua espécie, não carregam uma coleira no pescoço. São como fantasmas de carne e osso, que desfilam entre grama, chão de terra e passeios de concreto. Se os homens e mulheres com quem dividem um pequeno pedaço da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia não dão a eles a mínima atenção, procuram um jeito de se fazerem percebidos, proeza essa nem sempre alcançada. Lidar com gente é coisa difícil. Mais fácil seria se também soubessem falar. Só sabem latir. E, mesmo assim, quase não fazem.

 

A mansidão que carregam é aparente. Já se acostumaram ao lugar. Os milhares de estudantes vão e vêm. A cada semestre novo, saem alguns, os chamados veteranos, entram outros, os famosos calouros. Eles permanecem. Fazem parte de histórias que se escondem atrás da condição de animal.

Achar, ou melhor, ganhar comida nem sempre é fácil. Parado na frente da mureta rosa do Restaurante Universitário, um deles observa, quase sem piscar, a fila de estudantes que segue para matar a fome. Aliás, matar a fome também é seu objetivo. Os pelos, que eram brancos, agora estão encardidos. O focinho é a única parte do corpo em que aparecem tons grisalhos. Se boceja, aparecem os dentes amarelos, que já não estão tão afiados. O bocejo é sinal de preguiça. Preguiça boa, que provoca moleza até em quem vê.

 

Entrar no refeitório não é tarefa fácil. Requer agilidade. Mas depois que estiver lá, o trabalho de arranjar comida já não é tão difícil, pois existe sim aluno de coração mole. E, se o coração não é mole, sua cara de cão sem dono lhe garante ao menos um osso. Enquanto isso, outros esperam ansiosamente a sensibilidade daqueles que, no fim do expediente, lhes servirão os restos deixados nos pratos. O importante mesmo é não ficar com fome.

 

O odor que exala do corpo é motivo de repúdio para alguns. Aqueles que não ligam para o mal cheiro são os mais compreensivos. É deles que recebe diferentes batismos a cada dia, pois, como não possui um nome, ganha apelidos efêmeros, e que um ou dois dias depois já não se recorda mais. Jack, Zé, Pulguento, Chapolin, Ateu, Jim Jim. Às vezes, recebe nome de gente, principalmente nome de professor. Uma vez escutou um grupo de alunos o chamar de Adriano. Não conseguiu ouvir tudo que falaram, mas as risadas foram muitas.

 

Descansar é a melhor parte. Se, de um lado, um se arrasta gramado abaixo em direção ao módulo

administrativo, outros são vistos deitados tranquilamente a sombra dos quiosques e debaixo das árvores, saboreando a liberdade e causando inveja nos que passam presos a disciplinas, horários, seminários e tantas outras coleiras. São nesses momentos que não ligam se estão ou não sendo observados. Não ligam se o que os diferem dos demais seres humanos que compartilham daquele mesmo ambiente é a sua irracionalidade. Além do mais, o que é mesmo razão? É de comer? Assim como um osso de frango? 

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