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Crônicas

Passos em descompasso

A estrada é escura, mas não me sinto perdido e nem tenho medo. Apenas caminho. Não ouso dizer que tenho uma direção a seguir porque, na verdade, cansei de procurar direções. Essa estrada não tem saída, não tem destino, nem mesmo uma entrada que nos leve a ela. Ela não tem um começo e não tem um fim.

 

Há buracos. Nesses buracos, há água. Se me descuidar, piso em um deles e molho o sapato. Cobras rastejam por essa estrada de vez em quando. Minha mãe sempre me falava: “olha pro chão”. Eu raramente obedeço. Quando caminho, só tenho olhos para aquilo que está na minha frente. Aquilo às vezes é nada. Às vezes é tudo. Costumo olhar para o horizonte também.

 

O meu descuido com as cobras é até involuntário. Sinto que elas nunca vão aparecer em meu caminho e, quando aparecem, espero até que elas sigam seu destino. Felizmente, posso me gabar do fato de que pouquíssimas já o atravessaram. Já fui picado uma vez, não nego. Mas, caso houve algum veneno injetado em minhas veias, não foi suficiente para me derrubar. Tentei ser amigo de todas que encontrei. Uma experiência incrível eu diria. Em setenta e cinco por cento dos casos tive sucesso.

 

Continuo caminhando. Como não tenho um destino, o que tenho é a próxima parada ou talvez o próximo ponto de ônibus. Percebo que, em ambos os lados da estrada, surgiram cercas. Como só enxergo a sombra das estacas, decido tocar o arame e descobrir se é farpado. Sangue escorre dos meus dedos. Não me preocupo. Sabia que isso poderia acontecer.

 

Eu paro, agacho-me e sento no chão. A estrada está vazia, sinal de que já se passa da madrugada. Vejo que posso deitar na terra batida e é isso que faço. Um medo acabou de acordar e se aproximou de mim agora. Não posso voltar a caminhar até que eu possa compreendê-lo. O medo é de que a próxima parada não chegue.

 

Olhando para o céu, até esqueço das cobras. Mantenho minha atenção às estrelas. Não há muitas no céu hoje. Por isso começo a contar as ‘poucas’ que tem. Mais um desacato. Meus avós reclamariam. Falariam que faz mal, explicando que o número de estrelas que contamos é revertido na mesma quantidade de verrugas. Não deixo de rir ao me lembrar e então paro de contar. Melhor não duvidar, pois nunca se sabe.

 

Em cada estrela agora, vejo o reflexo de um amigo. Observo-os. Ouço-os dizendo palavras carinhosas e então o medo se decifra e volta a dormir. Finalmente me levanto e passo a caminhar novamente. Logo chego a uma ladeira. No fim dela, vejo que há uma luz. Certamente é minha próxima parada.

 

Nela, há alguém me esperando. A luz é forte, o que não me permite ter uma ideia clara de quem seja. Se for quem eu procuro, estou disposto a lhe dar a mão para que possamos caminhar juntos. Caso não seja, seguirei em frente e continuarei sendo o cara que gosta de arrancar sorrisos, seja nos caminhos escuros, seja nos caminhos contemplados com a luz do amanhecer.

Por Afonso Ribas
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