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Crônicas

À espera de mentiras

Dez minutos. Apenas mais dez minutos e já seria meia noite. Eu poderia dizer que o dia havia sido muito proveitoso e estava contente por isso. Porém, estar contente não me impedia de estar cansado e, mesmo com a exaustão que pesava sobre mim, eu permanecia acordado, olhando para o teto.

 

No quarto, apenas o foco de luz que partia da janela clareava, minimamente, o chão de azulejo. O apartamento estava obscuro e, ao olhar para o teto, eu olhava também para o nada, para a escuridão. Um turbilhão de pensamentos e preocupações rodeava minha cabeça. Quando finalmente me encontrei no tempo e no espaço, me virei para a janela. Em frente ao meu prédio havia outro. Foi então que reparei no apartamento vizinho.

 

A visão não era tão distante. De onde eu estava, conseguia perceber uma sombra na outra janela. Ela se movia para um lado e para outro. Parecia preocupada. A mão na cabeça e o rápido movimento que fez com os cabelos logo me fez perceber que se tratava de uma mulher. Mas não dei muita atenção. Afinal, o que quer que estivesse acontecendo, não me interessava. Virei para o lado da parede e fechei os olhos. Não percebi quando dormi.

 

Acordei com barulhos distantes. Ecos de vozes chegavam aos meus ouvidos e ressoavam sons exaltados. Quando olhei para o relógio que ficava acima da minha mesa de escrever, os números em vermelho apontavam que já se passava das duas horas da madrugada. Duas horas e trinta e cinco minutos para ser mais exato. As poucas horas que haviam se seguido desde que peguei no sono pareceram uma eternidade.

 

De repente, um grito distante separou-me de minha reflexão. “Você é um cretino!” Levantei da cama e fiquei sentado tentando perceber de onde o som tinha saído. Ao olhar para a janela, no lugar onde só havia antes a sombra de uma mulher, havia agora, também, a de um homem. “Você sabe que nas quintas e sextas eu chego tarde do trabalho!” A voz grave dele chegava em tom mais baixo no meu quarto. Mas a mulher continuava exaltada, gritando. “Eu não quero saber! Toda semana é assim! Você acha que eu sou cega?”

 

Após essa pergunta, a voz do homem ficou mais forte. “Você está insinuando que estou te traindo? Você acha que eu fico no escritório beijando a boca de outra ao invés de cuidar de produzir a garantia desse seu cabelo bonito, dessa sua roupa de marca e desse uísque que está aí ao lado de nossa cama? Eu te amo! Se você não acredita, eu desisto de nós dois!” Tudo ficou em silêncio. Só então desvio minha atenção da janela e volto a me deitar.

 

Acordo exatamente às sete da manhã, ainda morto de sono. O peso do cansaço ainda recai sobre mim. Vou logo para o banheiro e tomo banho rapidamente. Não demoro mais que cinco minutos. Sinto fome, mas o atraso só me deixa tempo para pegar uma maçã. Saio de casa faltando poucos minutos para sete e meia.

 

Ao chegar à calçada, vejo o apartamento da última noite. Sigo para o ponto de táxi e, então, outro detalhe me chama atenção. Percebo um casal na frente do prédio. Quando passo perto deles, não evito olhar para o lado. Os dois se beijam e, ao se despedir do que parece ser seu marido, a mulher, de cabelos ruivos e pele branca, diz: “Me desculpa por ontem à noite! Tudo aquilo foi em vão!” Imediatamente relaciono o casal com o acontecido na última madrugada.

 

Antes de seguir meu caminho, diminuo os passos e presto bastante atenção no homem, que, por fim, entra em um Kia Soul. É ao chegar ao portão da autoescola onde tento há dois anos tirar minha carteira de habilitação que, pelo que parece ser coincidência, me deparo com o mesmo rosto, saindo do Kia Soul, agora estacionado em frente a um escritório de nome “Master Advocacia”.

 

Estou quase entrando na autoescola quando vejo que, ao invés de seguir o seu caminho em direção ao escritório, o homem se dirige até a porta do banco ao lado do motorista e abre a porta. Desta, sai uma mulher loira, muito bonita, com um salto alto de cor preta. E então os dois se beijam.

 

Automaticamente, todos os trechos da conversa que escutei ontem à noite me vêm à cabeça e esqueço-me de entrar na autoescola, até que um colega me faz voltar de onde meus pensamentos estavam.

 

Completo toda a minha rotina do dia. Antes de ir pra casa, passo na casa de alguns amigos. Saio de lá já quase bêbado, pego outro táxi e chego no meu apartamento. Dessa vez, o relógio aponta 01h30min. Ao sentar na cama, me abaixo pra tirar os sapatos. Quando volto a me erguer, a luz do apartamento vizinho novamente me desperta a curiosidade.

 

Na janela, a sombra da mulher que vi na última noite, agora meio embaraçada pela visão de quem bebeu alguns copos de caipirinha, está lá. As mãos parecem segurar os próprios braços de modo firme. A inquietude da última noite já não é tão perceptível. Sigo o caminho do sono que meu corpo e minha mente exigem. A sombra permanece parada, como uma alma que divaga na escuridão, à espera de mentiras.

Por Afonso Ribas
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